quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Suhsahna - I


                O céu estava nublado e calmo. Tinha um tom escuro de profundo azul que junto das nuvens, cobria tudo, numa beleza atípica para as terras do Véu. O sol havia nascido tímido, encoberto pelas nuvens, e o escuro azul no céu começava a clarear a medida que o sol ganhava espaço naquela imensidão. O dia estava agradável, como sempre eram no castelo do Intocado. Suhsahna havia acordado não sabia a quanto tempo exatamente, o que se poderia dizer com certeza é que ela havia dormido mal naquela noite. Saudades de Hugh, aquele maldito. Do senhor Zucko e a senhora Sheya. Saudades dos dias que se foram. Daqueles que se foram.
                Eles se foram cinco anos atrás. Zucko e Sheya, os Anciões Monarcas do Véu, e tantos amigos que morreram junto dos dois... Morreram na Guerra do Reino dos Homens contra as criaturas das trevas e alguns humanos que se juntaram a eles. Radinianos, espectros, demônios, homens, contra os humanos. Humanos mortais e os não mortais. Xófeus não queria apenas dominar as terras onde governavam aqueles que detinham das sabedorias e ensinamentos antigos em magias. O senhor da morte (Ou Morte, como era chamado por alguns dos mais leais servos) queria tomar tudo, não para manter e governar. Mas para destruí-los e todos os que viviam lá. “Não há espaço para os fracos no meu reinado”, dissera Xófeus enquanto marchava junto de seu poderio para Além-Véu. E Hugh...
                Hugh havia mudado de lado quando achou que as forças de Vertaro, Véu, Além-Véu, e algumas forças menores das ilhas que prestavam vassalagem a Vertaro e ao Véu seriam derrotadas: Além-Véu era um caso a parte... Suhsahna só tinha estado nas terras de Além uma única vez, nessa mesma guerra, cinco anos atrás... A Guerra Dos Cinco, era como ficou chamada pelos que sobreviveram, em homenagem aos que morreram pelo lado que venceu. Por Lerrino Goss Velir, que comandou Vertaro e morreu no Forte do Mar-Livre. Por Zucko e Sheya, que comandaram as forças do Véu até Fortaleza Kna'Ma'Ka, para fazer frente na oposição a Zirdul, Primeiro comandante e irmão de Xófeus, e sua tropa de humanos sob hipnose. Por Tenos, o menino de dezesseis anos que parou trezentos e alguns homens que atacavam Forte-Do-Báu, em Vertaro. E por Iggard, o senhor capitão de Além-Véu, que derrotou Xófeus e o aprisionou numa estátua no Véu.
                Estimava-se que mais de trezentos mil morreram na Guerra Dos Cinco. E sobraram pouco mais de vinte mil vivos, dos que lutaram. Desses vinte mil, um quinto era do poderio de Xófeus, covardes que correram para se salvarem depois que seu mestre havia sido derrotado no Véu. Eu estava lá, eu lutei ao lado de Iggard. Ele derrotou seu aprendiz, e morreu pela mão do irmão que não quis treinar. Suhsahna não se recordava muito da batalha entre os dois, tudo o que viu foram lampejos, e tudo que ouviu foram gritos e maldições. Por fim, Iggard estava sobre seu aprendiz, que jazia deitado no chão. Todos pensavam que Xófeus estava morto, e a guerra acabada ali, mas o senhor capitão de Além-Véu iniciou um cântico antigo, na língua anciã que apenas aqueles que elevam seus conhecimentos em magia aos padrões dos deuses de Yurth'Hur conheciam. Era a língua dos deuses que ficavam Além da vida, Além de Tudo. O cântico era suave, tímido no começo, mas fazia Xófeus gritar e contorcer-se.
                Iggard estava brilhando em azul, lilás, verde, amarelo, vermelho, dourado e branco. Turquesa, anil, cobalto.

                A medida que o cântico avançava, Iggard parecia mais fraco e limitado, mas também Xófeus. O imenso homem tentou se levantar, mas suas pernas eram pedra. Mas, por fim, se levantou. Tentou falar, mas nenhuma voz saiu. Fechou os olhos e apontou para o mestre... E assim ficou. E assim esta até hoje. E que fique pra sempre assim.
                O senhor capitão de Além-Véu caiu no chão, dele saia fumaça branca e sem cheiro. Tinha parado de brilhar, tinha os olhos fechados e respirava ofegante. Luana, sua filha, e Suhsahna haviam saído do transe em que estava e começaram a correr em direção ao homem caído no chão, todo vestido em Amarelo, azul e vermelho. Então... Eu tropecei. Um homem incrivelmente pequeno e vestido todo em cinza apareceu ao lado daquele que não quis o treinar. O irmão de Xófeus encostou a palma da mão na cabeça de Iggard. “O prazer é meu, Scurj de merda”. Uma mancha azul apareceu na testa do senhor capitão Scurj. O sujeito se foi, sugando toda a luminosidade perto dele e deixando apenas sombras. Desapareceu.
                Iggard Grufes Scurj. Esse é o nome que se encontrava no trigésimo segundo túmulo no topo do vulcão adormecido ao sul da Fortaleza da Nunca Noite. No topo desse vulcão haviam sido enterrados trinta e um senhores capitães que haviam nascido em Nunca Noite, e o ‘Capitão que se sacrificou’, que é como Iggard ficou conhecido, foi o trigésimo segundo.
                A mancha que o pequeno sujeito cinza, que mais tarde foi identificado por todos como Zirdul, deixou na testa do mestre de seu irmão começou a se espalhar pelo corpo. Teria sido tão cruel ver o maior herói da Guerra dos Cinco morrer lentamente que Locke, aprendiz de Zucko, matou o homem que o havia salvado, a pedido do próprio. “Não quero morrer lentamente, mate-me, Zucko”. Ele o chamou de Zucko, mas Zucko morreu, esse é Locke... E assim foi feito. Com um pequeno projétil lançado em direção ao peito já azul do homem que estava deitado numa mesa de pedra, e ali ele morreu sem sentir nada. Ele vai finalmente vai se encontrar com os deuses. Os deuses com os quais fez contato ainda como mortal. Haegur Gurth. Haegur fo Jaerth. Servir aos deuses. Servir aos que o servem.
                A  essa altura, Hugh e os que sobraram do poderio de Kna’Ma’Ka haviam desaparecido. Ninguém havia sido encontrado na fortaleza e nem nas proximidades, e alguns dias depois as buscas pelo resto do poderio de Xófeus haviam parado porque alguns Radiniados estavam entrando em guerra civil. A guerra civil Radiniana havia começado porque alguns haviam apoiado Kna’Ma’Ka, mas alguns permaneceram por Vertaro. Os que lutavam por Vertaro estavam sendo massacrados quando a filha adotiva de Lerrino Goss Velir pôs-se em marcha em direção ás Ilhas de Radinia para conter a guerra civil, e os poucos que estavam vivos passaram a viver em Vertaro, ao longo dos treze fortes construídos pelos primeiros descendentes de Yurth’Hur, terras há muito esquecidas pelos homens e outros seres. Uma terra dos deuses. A filha adotiva de Velir, que não tinha o sangue do pai, mas suas atitudes, fora nomeada a primeira Senhora Capitã dos fortes de Vertado.
                No Véu, Suhsahna governava junto de outros doze mestres. Substituir Zucko e Sheya era uma tarefa difícil, e eu me sentia fraca. Indiquei doze daqueles que cresceram juntos de mim. Irmãos em armas. Eu teria indicado Hugh, porém..
                Além-Véu estava por conta de Dalilah, que era a vice-capitã de Iggard. Dalilah, das decisões ousadas.
                O reino dos homens estava por conta de cinco guardiões. Ninguém sabia quem eles eram, nem de onde vinham, nem mesmo se eram humanos. Eram guardiões, e isso era tudo. Esses cinco não tomaram parte na Guerra dos Cinco, embora já tivessem tomado parte em outras guerras, mais antigas. E eram outros guardiões. Suhsahna sonhava em ser uma guardiã, para que pudesse ver o reino dos homens mortais...
                Parou de divagar porque a janela de seu quarto, na torre sul do Castelo do Intocado, tinha se aberto. Um vento mais forte que o comum no Vale dos Rios Gugh, abriu a janela com força e levou até Suhsahna uma fria corrente de ar. Levantou-se, nua, e trancou as janelas. Vestiu suas roupas de baixo e por cima, um vestido de seda que havia ganhado de Zucko, há vários anos atrás. O vestido era longo, com cor de esmeralda e algumas esmeraldas bordadas ao vestido. Abriu a porta de seu quarto e desceu as escadas em espiral. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco...
                Vinte.
                Desceu os vinte degraus da escada e viu-se no corredor que a levaria ao pátio de entrada do Castelo. A torre sul ficava fora do castelo em si, era uma construção a parte que já fora usada como prisão para alguns reféns importantes de guerra. O corredor era cumprido, e permitia passagem para, no máximo, três pessoas lado a lado. Fora construído assim, estreito, para que pudessem conter com facilidade qualquer ataque ou surtida.
                Os treinados em magia que residiam no Véu eram treinados para serem soldados, curandeiros, telepatas, alquimistas e até professores, depois que concluíssem o treinamento. Suhsahna tinha habilidades em todas essas áreas. Mas gostava mesmo de ensinar, e era especialmente habilidosa em feitiços de cura e defensivos. Nunca gostou do ataque, ela sempre esperava que o oponente fizesse o primeiro movimento, para saber com o que estava lhe dando... Isso não funcionava com Locke. Se houve um guerreiro mais forte que Zucko no Véu, esse um era Locke. Locke... Espero que ele volte logo. De onde quer que tenha ido.
                Continuou andando, quando chegou a saída do grande corredor...
                ... E parou.
                O corpo de Hugh estava lá, pendurado numa árvore, bem no começo do pátio de entrada. Tinha uma adaga de aço negro cravada no peito. No coração. Estava claramente morto. Tinha o peito ensanguentado, mas fora isso, não tinha ferimentos. Os bonitos olhos de outrora estava fechados, seus finos lábios estavam secos e seu rosto bonito como sempre. Estava em paz. Gurth. Gurth Girah. Gurth Morkah. Gurth Ratah.
                - Sim, senhora, que os Deuses o levem, o libertem e o acolham. – Suhsahna ouviu uma gargalhada aguda. Ela conhecia a porra da gargalhada.
                Virou-se, para ver quem gerou aquela maldita gargalhada, fria como neve e cortante como mil adagas feitas do aço negro de Kna'Ma'Ka. E então, dormiu...

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