sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Clarisse - I

                                      Xófeus estava sentado numa das extremidades de uma longa mesa de madeira com lugar parar vinte pessoas, mas apenas oito ocupavam a mesa no momento: O próprio Xófeus, imponente numa túnica de tecido vermelho, com partes pretas e algumas partes brancas. Lorath, um espectro das terras de sempre-noite, mas que estava em forma humana. Galea, belíssima em um vestido longo com cor de safira, que combinavam com seus olhos. Peter, que estava vestido de forma bem simples, como um mero camponês das terras de Vertago. A própria Clarisse, que tinha deixado o longo cabelo de cor cinza solto, e que usava uma túnica como a de Xófeus, mas em cores diferentes: Vermelho, azul e lilás. Zirdul, o meio-irmão de Xófeus que, como sempre, vestia trapos de cor cinza. Verdana, com uma túnica totalmente preta que fazia contraste com sua pele extremamente pálida. E por fim, Hugh, que usava uma calça azul escuro e uma blusa de lã de cor bege. Hugh ainda não se acostumou com o frio de Rardinia, pensou Clarisse enquanto todos, inclusive ela, olhavam Galea.
                Xófeus já havia despachado alguns generais para algumas localidades menos importantes: A Ilha de Yurth’Hur(A deusa), a Fortaleza de Kna’Ma’Ka, as Ilhas do Graveto, e mais algumas ilhas nos continentes de Trovergo, Ferulum e o Velho Continente dos Homens. A guerra começaria assim que todas as terras necessárias fossem obtidas pelo singelo poderio que se encontrava no subterrâneo da Ilha de Rardinia, esse poderio era formado por pouco mais de três mil homens, quinhentos espectros de sempre-noite, duzentos que residiam no subterrâneo de Kna’Ma’Ka e mil e setecentos demônios que habitavam as terras perdidas de Jorath. Os espectros de Kna’Ma’Ka já estava marchando em direção ao extremo norte de Vertago. Mury Maz Zir, uma das capitãs de Xófeus, marchava ao extremo sul de Vertago. Sobre Galea fora imposta a tarefa de atacar Vertago no Castelo-de-Velir, onde a maior força daquele bloco de terra estava. É uma tarefa difícil, até para mim ou Hugh, é uma tarefa difícil.
                Clarisse e Hugh eram os principais capitães de Xófeus. Zirdul era tão forte quanto seu irmão, e isso fazia dele um igual aos olhos do Senhor Comandante do exército que iria marchar para tomar os reinos.
                Seria uma tarefa difícil. Cinco anos atrás, não conseguiram tomar os reinos com Setenta e três mil combatentes ao lado, fazer isso com menos de quatro mil parecia impossível... Mas, o plano... Com esse plano, há uma chance. É arriscado, mas há uma chance...
                - Senhor, não sei se sou pronta para essa tarefa. Atacar as forças Castelo-de-Velir em campo aberto e vencer é praticamente impossível, o castelo nunca foi tomado, senhor. – A expressão de Galea era de medo. Ainda assim, ela tem coragem de admitir que teme não realizar a tarefa imposta por seu mestre... – Quase todos que marcharem comigo vão morrer, alguns vão correr, e isso vai diminuir nossas forças. Precisamos de uma distração...
                - Uma distração, certo? Querida Galea, e se eu te dissesse que você é a distração? – Xófeus sorriu. Um sorriso com nada de alegria ou calor, seu sorriso era frio. – Vai colocar seus homens em batalha e atacar o maldito castelo, e se morrer, morrerá lutando. É mais do que se pode desejar. Uma morte limpa e sem dor. – Xófeus não temia a morte. Ele já beijou a morte nos lábios... E voltou. – Morra em batalha, senhora, ou morrerá aqui.
                A mulher com o longo vestido de cor safira se levantou, pálida, e saiu da sala. Nesse momento Clarisse soube que ela iria atacar. Bem, mais um, então. E, agora, as coisas ficam interessantes...


                Xófeus ordenou que Lorath, Peter e Verdana descessem toda a costa de Vertaro e as ilhas próximas, e queimassem toda floresta que protegia o vale. E também que destruíssem as Pontes-U, no Véu. Tenos matou mais de trezentos homens naquelas pontes malditas. O filho da puta matou meu irmão. Destruir essas pontes era inteligente, elas eram o único contato por terra que a parte sul do Véu tinha com a parte norte. O Véu era constituído de duas ilhas maiores, divididas por água, e também cinco ilhas minúsculas entre essa divisão de Água, e ali foram construídas as Pontes-U. Tinham esse nome porque o conjunto das pontas formava a letra U, mas de ponta-cabeça. Os três aceitaram a tarefa, e saíram.
                Para Hugh, a tarefa era invadir o Véu pelas três filhas de Shaya. As três filhas eram três montanhas que foram nomeadas em Homenagem a Shaya, que morreu na Guerra dos Cinco. Eu matei-a, vinguei-me. A menor montanha era chamada de Judith, a menor filha. As duas maiores eram chamadas de Roselena e Talilak. Uma vez que ele tivesse entrado no Véu, pelas filhas, ele deveria atacar a Fortaleza-Véu, que ficava a norte das Pontes-U. “Que a esse ponto já deverão estar queimadas”, disse Xófeus. E então, Hugh se foi.
                Para Clarisse, foi dada a tarefa de tomar cada um dos treze fortes de Vertaro, começando pelo Forte do Mar-Livre. Forte do Mar-Livre é onde aquela filha adotiva do antigo capitão Valir reside. Lerrino Goss Velir, eu não pude te matar, mas matarei sua filha... Lerrino havia matado a mãe de Clarisse numa batalha que aconteceu no Forte do Mar-Livre. Vingarei você, mãe, no mesmo lugar em que morreu. Depois que Genya morreu, Zirdul matou o capitão Velir. Helena viu seu pai morrer, assim como Clarisse viu a mãe morrer. Mas Clarisse desejava vingança pelas próprias mãos. As únicas pessoas que Zirdul ama além de seu irmão, era minha mãe. Ele ainda a ama, mesmo ela tendo partido... Clarisse sentia saudade da mãe, e de um pai que nunca teve. Zirdul tomou-a como protegida depois da batalha, pelo amor que tinha por sua mãe, mas nunca realmente a amou como tinha amado Genya.
                Mas, quando Xófeus escapou de suas correntes, tomou-a como filha. A coisa mais próxima que Clarisse tinha de um pai era Xófeus. E considerava Zirdul como um tio.
                Aceitou a tarefa de tomar os fortes de Vertaro, fez uma reverência, e tomou direção á porta da sala onde estavam.
                - Volte, Clarisse. Quero que você fique. Precisa saber para onde Zirdul vai marchar, e para onde eu marcharei. – Clarisse ficou surpresa. O senhor da Morte iria marchar, ao invés de apenas mover suas peças. Sentou-se e olhou seu mestre. – Eu vou para Mata de Solás-Véu, não posso revelar o que vou fazer, nem mesmo para vocês.
                Houve uma pausa...
                -... E Zirdul marcha até os escudos...
                Mais uma pausa...
                - Mas, antes disso, ele passará no Véu para recuperar uma velha amiga... Aquela, das esmeraldas...
                Mais uma pausa. Mas Clarisse já tinha entendido tudo nesse ponto.
                Suhsahna. A filha bastarda de Zucko.
                Ninguém vivo, a não ser os três que estavam naquela sala, sabia que Suhsahna detinha do sangue de Zucko.
                - Uma vez que estiver nos escudos, com a bastarda, Zirdul vai nos esperar... E então, atacamos Além-Véu.
                - Mas, qual a importância da bastarda..? – Perguntou Clarisse, e a resposta lhe veio de súbito.
                Sangue antigo circula o corpo da bastarda. Sangue de Zucko e sangue Iggard. Clarisse sorriu. Xófeus Sorriu. Zirdul gargalhou.
                - Sim, Clarisse. Sangue. – Disse Xófeus. E então, um alarme soou, ouviram gritos vindos de um corredor, um andar abaixo do qual estavam.
                Correram da sala, os três. E encontraram Hugh tentando fugir com um grupo de detentos do Véu, Além-Véu e d’Os Escudos. Mataram quase todos, deixaram Hugh e duas mulheres vivas, a pedido de Xófeus. Uma adulta, e uma adolescente. Na confusão da batalha, Xófeus quase foi esfaqueado por Hugh nas costas. Salvei-o no momento exato. Não fosse por mim, estaria morto, senhor da Morte. Levaram os três vivos para uma sala mal iluminada, Clarisse e Zirdul saíram da sala, deixando apenas Morte e os três na sala, e mais três servos de Xófeus. Um desceu com um archote. Clarisse e Zirdul deixaram a sala, e esperaram onde o conselho estava ocorrendo. Ficaram lá por um tempo e nada aconteceu. E então, ouviu-se um grito cortante. De pura raiva...
                ... Era Xófeus...
                ... Ao chegarem à sala, Hugh estava morto, com uma adaga no peito. As duas mulheres, os três servos e mais um que havia chegado depois estavam mortos, com queimaduras pelo corpo todo. E Xófeus estava sentado numa grande cadeira de pedra, respirando ofegante. Ele estava com raiva.
                - Mudança de plano, senhores. Eu vou marchar sobre o Véu, e vou destruir cada maldito pedaço de pedra naquela maldita terra. Hugh era um espião. Um filho da puta de um traidor. Estava tentando fugir com os prisioneiros que seqüestramos quatro anos atrás. Lembram-se disso? – Xófeus perguntou. Ele falava rapidamente e só então parou pra respirar. – Vocês dois estavam juntos. Nesse dia. Nesse dia que eu acordei. Eu confiei no Rartig, e ele me traiu.
                Xófeus se levantou.
                - Eu não pretendia matar os habitantes do Véu que quisessem me prestar vassalagem. Faria deles servos. – Escravos, pensou Clarisse. – Agora, pretendo matar cada filho da puta que ousar se opuser á mim. Desde Kna’Ma’Ka, até Além Véu. De Vertigo, até Trovergo.
                Agora as coisas ficaram mais interessantes... Pensou Clarisse, sem conseguir dizer nada. Zirdul gargalhou, fez uma reverência, e disse:
                - Vou pegar a bastarda. – Disse, e virou-se... Então Xófeus respondeu.
                - Sim, você vai pegar a bastarda. Mas antes, toque o caos onde quiser. E me entregue uma mensagem... Envie uma mensagem para cada Forte, Fortaleza ou Castelo nas terras de Trovergo, Vertigo e Gutaro. Uma mensagem bem simples, ‘preparem-se’, e certifique-se de ser criativo para entregar as mensagens. – Terminou de falar. Não sorriu e não expressou nada que não fosse raiva. Eu nunca o vi assim. Ele claramente odeia ser traído. Era a segunda vez que isso aconteceu ao Senhor da Morte.
                Xófeus desapareceu, sugando toda a luz da sala, numa nuvem de sombra.
                Zirdul pegou um dos corpos de algum dos servos que seguravam archotes e fez o morto se levantar. Clarisse se espantou. Além de dominar as magias de controle da mente, tortura e ilusões, ele é um necromante. Tocando a testa do morto com o dedo indicador da mão esquerda, plantou uma mancha azul na testa do morto-vivo, e então conjurou um pedaço de pergaminho. Escreveu algo que Clarisse não pôde ver e colocou- no bolso da túnica do homem amaldiçoado com a mancha azul na testa, a mancha se espalhava lentamente...
                Tocou-o na testa, novamente, dessa vez com a mão inteira. E então o homem desapareceu. Clarisse viu, pela segunda vez no dia, a luminosidade da sala desaparecer. Poucos dominavam esse feitiço, de se transformar em sobras e reaparecer na forma humana em outro lugar. O pequeno homem vestido de cinza respirou ofegante. Essas magias o deixaram cansado. Descansou, por alguns segundos, e agarrou-se ao corpo de Hugh. E, pela terceira vez naquele dia, a luminosidade da sala foi envolvida por sombras.
                Clarisse estava sozinha na sala, e pôde olhar melhor os cadáveres. Reconheceu, então, a mulher e a filha de Hugh... A mulher havia sentido a adaga na mão, a mesma adaga que se encontrava no peito de Hugh. Então, Xófeus perdeu um de seus generais... Perdeu seu único amigo.
                Queimou os corpos que se encontravam ali, e depois de alguns minutos, saiu da sala e andou pelos longos corredores subterrâneos daquela caverna que se encontrava em Rardinia. Eram todos construídos em mármore negro, tinham certa beleza não muito comum. Uma beleza terrível, e refletia parcialmente a iluminação gerada pelos archotes... Fez uma curva para a direita, depois de estar andando por certo tempo. Viu um espectro passando, transparente, e parou para olhá-lo...
                Não posso sentir a presença deste um. Mesmo sendo um espectro, deveria sentir a presença de sua memória, há algo errado...
                Ouviu passos, e ficou atenta. Espectros não produzem som, exceto quando falam. Uma pessoa se aproximava em direção oposta á que Clarisse andava. Uma pessoa se aproximava em direção á que Clarisse andava. Estava cercada num corredor estreito. Viu a pessoa na sua frente primeiro, e então a atacou. Lançou um projétil de gelo em direção ao monte de trapos que se movimentava, obviamente a pessoa não queria ser identificada. O projétil foi defendido, e nisso o espectro enfraqueceu. Uma ilusão. Uma distração.
                Atacou o monte de trapos novamente, com um projétil maior, e de fogo. Foi desviado de lado, e a vítima atacou, então. Clarisse espantou-se com a força do ataque, e a dificuldade que teve para livrar-se dele. Chicotes de fogo formaram-se no ar, e começaram a se fechar em volta do alvo que atacava. Livrou-se do ataque com uma bolha que formou em volta de si mesma, eliminando todo o ar dali de dentro. Sem ar, sem fogo. É um dos antigos mistérios. Por um momento, Clarisse se lembrou da pessoa que estava vindo pelo outro lado. Virou, e tudo que pode ver foi uma adaga penetrando sua barriga, então uma espada, vinda de trás. Então, não sentiu mais nada, apenas caiu com seu próprio peso. A ultima coisa que viu foi a face do segundo atacante. Que rosto lindo, pensou.
                Seu ultimo pensamento. Não conseguiu dizer nada, e então morreu no chão frio de mármore negro.

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