domingo, 10 de fevereiro de 2013


->Prefácio - Xófeus (I)

                Xófeus olhava para o traidor. Covarde, traiu-me, e ainda ousa pedir clemência... Darei-lhe a misericórdia que quer. Vai ter a morte, não há mais de sofrer. É mais do que merece, o filho da puta. Tinha o supercílio ensangüentado, um corte profundo abria-se desde começo de seu olho direito, e ia quase até o começo do couro cabeludo. Perguntou-se se ele ainda conseguia ver algo com aquele olho... Ele precisa ver como vai morrer, e o que lhe farei antes de lhe dar a misericórdia da morte... Usou-me, então vou usá-lo. O ar na sala mal iluminada era gélido, as sombras projetadas pela fraca iluminação dançavam com graça, sempre gostou do fogo, o fogo sempre gostou dele. Dois de seus seguidores seguravam archotes, junto á única saída da sala. Bem, a única saída para aqueles que pretendem viver... Infelizmente, Hugh não vai viver... Traiu-me. Chamou um terceiro seguidor, levantou um pouco a cabeça, e sussurrou-lhe ao ouvido. “Traga-os”. Voltou a contemplar o homem caído ao chão, uma gargalhada subiu-lhe, de súbito. Não só tinha conseguido uma vitória naquele dia, mas também conseguiu encontrar o traidor... Decerto ficou descontente com a traição. O traidor era considerado ser seu seguidor mais fiel até então, foi o homem que se manteve ao lado de Xófeus desde que sua prisão foi quebrada. Maldita prisão. Não só o ajudou logo depois de ter escapado, mas o ajudou a escapar... E traiu-me.
                Mas o que seria sua perdição caiu como uma pluma, o plano surgiu-lhe quando capturou um grupo que tentava fugir de lá sem serem notados, eles eram cativos, liderados por Hugh. Entre eles, a mulher e filha do traidor, que foram presas junto de todos os outros que faziam tentativa de fugir. Não foram exatamente presos... Aquelas pessoas foram seqüestradas enquanto dormiam, mas essa verdade era limitada a poucos. – No mesmo dia em que escapou do lugar onde fora preso, Xófeus, junto de outros três seguidores seqüestraram vinte e três dos guardiões, aspirantes a guardiões, e até crianças de colo, e os levaram para o lugar onde estava atualmente. – Nunca achei que Hugh pudesse agir com tanta frieza. Raptou mulher e filha, tratou-as como duas mulheres desconhecidas, sem demonstrar afeto nenhum por elas, nem por nenhum outro dos que foram seqüestrados. Atuou bem, Hugh Rartig... Pensou Xófeus, enquanto fitava o rosto sujo e ensangüentado que chegou a chamar de amigo. Traiu-me.
                Poupou as duas mulheres e aquele que pensava ser seu amigo. Fui descuidado, não voltará a acontecer... A essa hora eu poderia estar morto. E não posso morrer, não ainda. O que pensava ser seu mais fiel seguidor não passava de um peão que não soube se vender. Era certo que tinha talento e habilidades fora do normal. O filho da puta poderia ser páreo para mim, nessa forma inferior. Tinha servido bem, e por quatro anos e alguns meses fez seu trabalho tão bem que ninguém percebeu que era um traidor. Traiu-me!
                Levantou de sua cadeira, uma cadeira simples feita de pedra cinzenta e velha. Tinha rachaduras e fissuras, poderia ter dois, ou três milênios. E com isso poderia dizer que o local que tinham encontrado era realmente velho, não deixando de ser um bom lugar para uma... Esse lugar agrada-me, quase posso chamá-lo de casa. Hugh o tinha mostrado, conhecia-o tão bem como conhecia os segredos de seu mestre. Segredou-lhe tudo o que tinha: suas intenções, seus planos, seus desejos. Não se pode confiar em ninguém, não é mesmo?
                 Olhou novamente Hugh. Seu corte havia inflamado, deu uma volta em torno dele e percebeu que lhe faltava uma orelha. Os machucados estavam em carne viva e fediam... Xoféus agarrou-lhe o pescoço, levantou por alguns trinta centímetros do chão e curou seus ferimentos.
                Hugh tentou resistir junto dos que conseguiram lutar, morreram todos. Rartig foi o último a se dar por derrotado, lutando até mesmo depois de ser desarmado. Subestimei-o, e me apeguei demais a ele para ter suspeitado de algo.  Ele quase me matou. Percebo que Hugh sabe jogar quando precisa. Atacou-me por trás, teria metido aquela porra de punhal nas minhas costas se Clarisse não o tivesse parado. Fitou os bonitos olhos cinzentos do jovem homem... Nunca tinha realmente reparado nas suas feições, tinha um rosto sério e marcante, quase carrancudo, mas não deixava de ser bonito. Era pálido, e tinha cabelos castanhos, um nariz pontudo e lábios finos. É bonito. Luta bem e é bonito, além de ser inteligente... Uma pena.
                Viu a luz de um terceiro archote adentrar a ampla sala, junto de um quarto archote. As duas mulheres que haviam sido poupadas foram trazidas, com mãos atadas ás costas, á sala. Foram jogadas no chão com violência... Pensou em repreender seus servos por isso. Mas não o fez. A hora pra violência está chegando. Mas não ainda, preciso delas vivas... Por mais alguns minutos. Tinha a impressão de que não iria tirar informações de Hugh. Torturar-lhe não funcionou, ele tinha coragem e era fiel. Não fiel a mim, mas fiel... Vamos ver como vai agir quando eu torturar suas mulher e filha. Aliviou a pressão no pescoço do homem que segurava, colocando-o no chão, virou-se, para a parede, de modo que ficasse de costas para seus seguidores e seus prisioneiros. Começou a falar:

                - Hugh... Pretendo te matar. Lentamente, não antes de te torturar novamente, quero vê-lo sofrer. Não pretendo matar sua mulher, e nem sua filha. Não pretendo nem torturá-las. Podem viver como servas. – Escravas. – Não pretendia te machucar... Foi um bom servo. Um lazarento de um traidor, sim. Mas serviu-me bem. Usei-o... E ainda tenho planos pra você. É triste eu ter que te matar. Ainda vai ter sua utilidade. – Traiu-me.
                - Não vou lhe dizer nada. E tenho certeza que elas preferem morrer a trair-me, ou trair-nos. Traidores merecem morrer. Mate-me. Poupe-me desse circo. Mate-me logo. – Suas mulher e filha nada diziam. Eram estátuas, paralisadas não por um feitiço, mas pelo medo. O medo... Que era tão amigo do homem demasiadamente grande e pálido com quem Hugh falava, Xófeus era íntimo ao medo, dominava-o e o dobrava a sua vontade. – Vou morrer com honra, servindo ao que sempre acreditei.
                Numa coisa eles concordaram: ele iria morrer. Traiu-me.
                Lembrou-se do tempo que passou aprisionado... Preferia morrer a ter que enfrentar novamente suas correntes. Não morreria com honra, mas morreria, seria poupado do sofrimento. Foi capricho de seu mentor fazê-lo fraco o suficiente para não escapar, e forte o suficiente para não morrer. Ele dizia-se totalmente bom. Condenou-me a não sei quantos anos dentro daquela porra de jaula. Prefiro estar morto a estar aprisionado. No entanto, sobreviveu, sabe-se lá como. Não tinha motivações que o fizessem ser forte, apenas um sentimento de remorso e fracasso. Mas a vontade de vingança insistia em agarrar-lhe, e puxar para a borda daquele oceano de dor, não fosse pelo desejo de vingança, teria se afogado. Estaria morto. A morte era um assunto que o intrigava, não tinha medo da morte e a aceitava bem. Devaneou novamente sobre seu tempo aprisionado. Nunca mais ficarei preso, terei o cuidado de me matar antes. Fez esse juramento ainda ao estar aprisionado... O rosto de Hugh Rartig entrou em foco novamente, como aconteceu quando imergiu de seu calabouço. Fitou-o, ainda se demorando nos devaneios, e então voltou a falar:
- Não se morre com honra. – Disse Xófeus, sacando um punhal e cravando numa das mãos da esposa de Hugh, ela gritou de dor. O gritou tomou conta da sala. Xófeus riu. – Mas se vive com honra. Creio que não vá deixar sua mulher, uma pessoa inocente, sofrer... Diga-me. Quem é a maldita criança?!
Dizia-se que a criança viria para pôr uma ordem ao mundo, fazê-lo crescer. E prosperar... Eu sou o responsável pelo futuro de todos. Chegará um tempo em que colocarão suas esperanças em mim. Irão me idolatrar como um deus, não como um mortal. Fui mais ousado que Zucko. Desafiei-o e iria derrotá-lo não fosse por aquele bastardo nojento. Locke ‘Sem nome’, o bastardo. Ainda se lembrava de como aconteceu... Estava pronto para lançar o projétil em Zucko, iria o acertar em cheio. Sem nada que o defendesse. Então adormeceu... Novamente voltou ao presente, os pensamentos que iam e vinham por sua cabeça nunca o deixavam em paz. Eram raríssimos os dias em que não caia sem querer numa antiga lembrança ou sonhava com elas. Xófeus atribuía à culpa de seu fracasso ao fato de não saber controlar suas emoções... Emoções são coisas mortais. Preciso me livrar disso, minha raiva fodeu-me uma vez, não acontecerá novamente.
Ser chamado mortal o incomodava acima de tudo. Era mais sábio e inteligente que os outros, mais ousado. Porém... Seu devaneio foi interrompido pela voz que há muito conhecia. ‘Acorde’, ouviu, então retornou á sala, vislumbrou o rosto daquele que o acordou tempos atrás...
- Prefiro morrer á entregar a criança. Fiz um juramento. Não a terá, nunca a terá. Sei que vai me matar, todos nessa sala sabem. Eu e minha família servimos bem aos nossos caminhos. – Xófeus o amaldiçoou em silêncio. Bonito, talentoso e inteligente. Demasiado inteligente. E ainda assim burro... Se realmente fosse inteligente, não teria me traído. Traiu-me.  – Eu lhe pediria uma morte rápida, mas não acho que terei essa piedade de você, senhor... Então...
                Hugh levantou-se, e pegou o punhal que estava cravado numa das mãos da mulher, não chegou a ouvir o grito de dor de sua esposa. Ou ela não havia gritado. Xófeus o tentou impedir sem sucesso. Maldito! Num rápido movimento, cravou o punhal em seu peito, e caiu morto no chão... A ira de Xófeus foi responsável pelas outras seis mortes. Não viu nada, não ouviu nada, não tentou impedir sua raiva... Sua raiva mais uma vez o teria traído. Trai a mim mesmo... Minhas emoções mais uma vez me foderam.
E Hugh, afinal, morreu com honra...

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